sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As idades de Ana




Foto: Rafael Cavalcante
A escritora cearense Ana Miranda completa hoje 60 anos de vida. Às voltas com a produção de um novo livro, ela interrompe os trabalhos para cuidar dos filhos e dos netos, enquanto sonha em voar

Uma casa de tijolos amarelos cercada de muito verde. Uma rede armada na varanda. Longe da vida citadina, o mar faz a única trilha sonora. Uma gata siamesa, Filomena, cruza a varanda em passos lentos. “Vó, cadê meu ovo com bacon?”. Um céu azul e o vento forte balançando os cabelos um tanto grisalhos. Esse é o cenário na casa de Ana Miranda, na Prainha, onde o tempo parece não correr na mesma velocidade dos grandes centros.

Um reflexo desta vida pacata está na voz mansa e no sorriso discreto que sublinha cada palavra da escritora. Numa longa conversa sobre literatura, cinema, inspiração, trabalho, ela demonstra o quanto de serenidade e maturidade o passar dos anos lhe trouxe. “Não acredito muito nas idades. Esse é um padrão de tempo, mas existem mil idades. É um símbolo. Posso tirar uma carteirinha, não pego fila, tenho lugar para estacionar”. Para ela, esse símbolo chegou com tranquilidade, entre perdas e ganhos. “Sinto que a disposição física diminui, mas a disposição mental aumenta. Gosto da experiência. Para o escritor, quanto mais velho, mais venerável”.

Nascida em Fortaleza, em 19 de agosto de 1951, Ana Maria Nóbrega Miranda, com apenas cinco anos, foi morar no Rio de Janeiro. Depois, em Brasília. Em seguida, em São Paulo. Criada dentro de uma educação moderna e com liberdade, ela pode provar vários sabores. Escreveu poesia, trabalhou no cinema, fez ilustrações, fundou a editora da Fundação Nacional das Artes (Funarte), enquanto trabalhava no órgão. Mas foi mesmo na literatura, que ela se encontrou. Se houver um ponto de partida para sua dedicação às letras, lembra ela, talvez tenha sido quando, ainda pequena, alguém lhe fez uma pergunta, mas não obteve resposta. Por algum motivo inexplicável, Ana correu para o diário e escreveu: “Hoje me fizeram uma pergunta e eu respondi”. Pronto. Foi o momento onde ela percebeu que poderia recriar o mundo, consertar os próprios defeitos, fugir da timidez, moldar a realidade da maneira que bem entendesse.

Daí em diante, mais do que nunca, o diário tornou-se um amigo constante. Ali, contava sobre o dia, anotava impressões e se aventurava nas primeiras poesias. E foi destas poesias, guardadas pela mãe, que nasceu Anjos e Demônios. “Um amigo me sugeriu publicar, mas eu achava muito ruim. E é ruim mesmo”, conta, antes de uma boa risada. Em seguida, veio Celebrações do outro, também de poesias. “Esse é pior ainda porque é pretensioso”. Tempos depois, viria a escrever um roteiro para cinema baseado em Clara dos Anjos, de Lima Barreto. O texto, escrito por incentivo do cineasta Nelson Pereira dos Santos, se perdeu e, só recentemente, voltou para a autora.

Ana revela que escreve bastante a partir dos sonhos. E foi de um deles que nasceu Boca do Inferno, seu primeiro romance histórico e, até hoje, seu livro mais célebre. No sonho, a escritora era uma mulher do século XVII, que tinha seu vestido de noiva roubado no dia do casamento. Para reaver seu pertence, ela percorria a cavalo a estrada do ouro, que liga Paraty (RJ) a Ouro Preto (MG). Impressionada com o que viu, ela decidiu mergulhar no que havia sobre a época, desde costumes, personagens até a forma de falar e escrever. Foram dez anos de pesquisa até a publicação. “Foi um sucesso retumbante. Mas eu queria mesmo era ficar em casa, lendo e escrevendo”.

E é lendo e escrevendo que ela passa a maior parte do seu tempo. No momento, ela está se dedicando a um novo projeto, sobre o qual ainda não quer adiantar nada. Também acaba de encerrar a biografia de Chica da Silva, que será lançada pela editora Leya. Outros 63 projetos se acumulam numa lista sobre sua escrivaninha. “Mesmo que eu faça um livro por ano, o que é impossível, não terei tempo de realizar isto tudo”, avalia. A única força capaz de lhe tirar dessa rotina é a presença dos dois netos. “Aí, eu sou avó o tempo inteiro, você está vendo. Eles são a razão de tudo”.

De volta ao serviço, ela se guarda na casa da Prainha, que é seu pedaço de paraíso. “Para ter inspiração, basta olhar pela janela. A casa inspira é a não escrever”, brinca, acrescentando que trata-se de uma casa de fases, que está sempre recebendo visitas, tanto que chega a procurar espaço para a solidão. E nesse tempo entre novos projetos, netos, filhos, casa, ainda há espaço para o sonho? Para a resposta, Ana Miranda precisa de um tempo. “Tenho tantos sonhos...”. Ela olha para o vazio, pensa mais um pouco para eleger apenas um. “Que o mundo viva em paz. Agora, se for um sonho particular, eu queria voar. Sonho muito que estou voando”.

Quem

ENTENDA A NOTÍCIA

Ana Maria Nóbrega Miranda nasceu em Fortaleza em 19 de agosto de 1951. É autora de títulos como o premiado Boca do Inferno. Em 2005, voltou a morar no Ceará. Quinzenalmente, aos domingos, escreve no O POVO

Marcos Sampaio
marcossamapaio@opovo.com.br

Fonte: O Povo 




Cearense, de Fortaleza, Ana Miranda nasceu em 1951 e cresceu em Brasília. Morou no Rio de Janeiro entre 1969 e 1999, quando se transferiu para São Paulo. Atualmente mora na Prainha, em Aquiraz, litoral leste cearense. Estreou na literatura e, 1978 com um livro de poemas intitulado Anjos e Demônios. Pela Companhia das Letras, publicou 06 romances, uma novela e um volume de contos. Tem livros publicados nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália. Seu livro Boca do inferno foi agraciado com o prêmio Jabuti, além de ter sido incluído na lista dos cem melhores romances do século em língua portuguesa, publicada pelo jornal O Globo. Seu livro Dias e Dias, inspirado na poesia avassaladora de uma jovem pelo poeta Gonçalves Dias.

Debatedores: Ângela Gutierrez, Batista de Lima. Mediador: Gilmar Chaves.
Programa gravado no auditório do CCBNB Fortaleza em 29/04/2003.

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