quinta-feira, 9 de junho de 2011

Um verso entre o linotipo

Em homenagem a "Fortalezaamada", a escritora Lucíola Limaverde lança hoje "Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza", que rememora a obra de um jornalista-cronista-amante

O jornalista Ciro Colares atuou no Ceará por 60 anos, sendo testemunha da história da imprensa local
FOTO: NEYSLA ROCHA (04/1984)

O bom e velho Ciro era pessoa calada, mas querido por todos. Não estava nas palavras faladas o seu forte, mas na escrita. Fora dos poucos, daquele tipo de jornalista por sina, que não vê jeito em ser outra coisa na vida. E justamente por ter sido forjado escritor a partir dos jornais, sua crônica nascia da cidade, da rua, "de coisas sutis que lemos no jornal, mas não damos tanta importância", como explica a escritora e jornalista Lucíola Limaverde, que decidiu lhe rememorar.

Após 17 livros reunindo suas crônicas, fadadas ao esquecimento nos jornais, Ciro finalmente ganha um livro sobre si, sobre jornalismo e literatura, sobre a cidade e o tempo. Sobre a poesia, ainda que escrita em prosa. "Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza", publicação do Trabalho de Conclusão de Curso de Lucíola será lançado hoje, às 19h, na sede da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Ceará, a Adufc.

Trajeto
A leitura, o menino Ciro aprendeu nos jornais. Ali, no chão da sala de casa, o moleque chegava a se cobrir com os papeis já amarelados, sujava-se da tinta da prensa no esforço de juntar as letras e delas via palavras e delas frases e delas a completude do jornal. Que coisa importante tinha entre as mãos.

Antes de tudo, aquelas páginas enormes eram o trabalho do pai, jornalista do Correio do Ceará, que como as outras redações se situava no Centro. Ao Seu Domingos Colares, visitava todos os dias, levando-lhe a marmita do almoço. E ainda que o velho fosse um tanto ranzinza, Ciro conseguia pôr-se na máquina e lá satisfazia o gosto de escrever suas próprias linhas, entre uma ou outra colherada do pai.

Aos 18 anos estava seguindo a sina do pai, trabalhando também no Correio do Ceará, mas como revisor. A produção escrita, no entanto, só passou a ser exercida em 1946, quando ingressou no jornal "O Povo". Em 60 anos de jornalismo, Ciro passou por diversas redações cearenses, sendo testemunho da história da imprensa de nosso Estado. Também essas páginas do Caderno 3, por sinal, foram palco da escrita cotidiana de Ciro, que atuou como articulista no Diário do Nordeste, em fins dos anos 90, publicando sempre aos domingos.

A palavra conquistou-lhe não apenas o ofício, mas também os amores. Não haveria melhor modo. Foi pela troca de cartas que Ciro apaixonou-se pela eterna esposa, Neuza. O endereço precioso fora anotado em 1943, quando sob o pseudônimo "Bety Selma" o publicou na revista Carioca. Mas conheceram-se apenas em 1948, cinco anos depois, quando já era ofensa que a distância física atrapalhasse amor tão sincero. Casaram-se em 1950.

Neuza fora, de fato, a amante a moda antiga. Das cartas e da permanência até os últimos dias da vida. Ciro despediu-se da "Fortalezamada" (termo por ele cunhado) nos braços da esposa, acometido por um infarto.

A escritora e jornalista Lucíola Limaverde saiu à caça das poucos livros ainda existentes de Ciro Colares para a produção de sua monografia, que culminou na obra

Musa
À beira mar, Ciro costumava se banhar de inspiração para falar de um dos maiores amores: Fortaleza. O jornalista-cronista-amante era morador do Jardim América, ou do Beco do Segundo, como era conhecido. Seu texto tinha um pé na rua e outro na areia da praia. Mas não só de mar e sol viveu o repórter.

Ciro fazia denúncia com a mesma sensibilidade com que beijava as faces da "Fortalezamada". Na obra de Lucíola, destaca-se o poema-crônica escrito por Ciro que ilustrou a capa do caderno de cultura da Tribuna do Ceará, em agosto de 1973.

Tendo a prefeitura demolido sem aviso prévio treze casebres no então bairro Verdes Mares, Ciro buscou sentido nos detalhes: "As lágrimas das mulheres/ e o choro das crianças/ serão cobertos pelo asfalto... E sobre a sua mudez rodarão automóveis do ano; ou cairão restos de uísque/ das futuras residências infamiliares". E mais na frente, arrematou: "Amanhã pode ser domingo pra todo mundo / menos para as famílias da ex-favela do bairro Verdes Mares / só porque elas não estarão reunidas em casa".

Registro
Em 2008, Ciro já tinha nos deixado quando a ainda estudante Lucíola procurou pelo jornalista e professor Ronaldo Salgado. A ele confessou seu desejo por estudar crônica e jornalismo, e Ronaldo apresentou-lhe a obra de Ciro. A estudante, já utilizando das ferramentas jornalísticas, saiu à caça, já que os livros de Ciro se haviam caído no esquecimento, como infelizmente ele mesmo sentenciara nos últimos dias de vida. Encontrou alguns exemplares de seus 17 livros na Biblioteca Pública e revirando em sebos.

"O que me encantou na obra do Ciro foi a capacidade dele de pegar coisas simples, do cotidiano, cenas das ruas, e relatar isso, traduzir, com substância. Isso não se aprende", comenta Lucíola. Para ela, as pessoas nascem com esse olhar para a beleza escondida das coisas. E, por isso mesmo, independentemente de os jornais atuais concederem ou não espaço para poesias em prosa como as Ciro, nada garante que haveriam hoje tantos jornalistas produzindo semelhante.

A oportunidade de produção do livro surgiu através do Edital Prêmio Literário Para Autores Cearenses 2010, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Quanto a isto, destaca-se o fato de que Lucíola não precisou fazer modificações para adequar a monografia de fim de curso para um formato, digamos, ensaístico. Já estava feito. A então estudante não viu modo de se falar de Ciro Colares sem pôr os dois pés na literatura. Assim, mesclou teoria, análise e poesia, retirando o livro da categoria de escritos para públicos selecionados.

Ainda que se apresente, de fato, como uma importante referência bibliográfica aos que queiram estudar as nuances entre jornalismo e literatura, "Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza" é, acima de tudo, um registro merecido da vida e da obra "de um dos maiores cronistas nacionais, sem medo. Ao nível de Rubem Braga ou João do Rio", como assegurou a autora.

Nas entrevistas finais, reproduzidas por Lucíola, Ciro se mostra e tal qual a poesia que escreve, nele não há prolixidade. Ciro é a leveza impressa pelo chumbo do linotipo, é a beleza de um passeio despretensioso com a neta pelo Jardim América.

"Acho que a gente já nasce enxergando a poesia, depois é que se passa tudo para o papel. Minha neta Andréa dizia ao chegar comigo à pracinha do Jardim América, depois de uma chuva ligeira: ´Vovô, o sol tá enxugando a pracinha!´. Poesia é justamente a beleza que se vê ou a beleza que se cria".

E essa sua escrita, apesar de simples, tinha a força de gritar: Parem as máquinas! Falta um verso ao jornal.

JORNALISMO E POESIA 
Jornalismo e poesia Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza Lucíola Limaverde
Expressão gráfica, 2011, 151 páginas, R$ 10
O lançamento acontece hoje, às 19h, na sede da Adufc (Av. da Universidade, 2346).
Contato: (85) 8764.0904

MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER

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