segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O livro digital e o demónio da analogia

As promessas contidas no livro digital exercem um grande fascínio, mas maior é a resistência do livro impresso e não se vislumbra a sua morte. 

Mudrats Alexnadra/CORBIS
Há quase meio século, escutou-se pela primeira vez a profecia da morte do livro impresso. Foi em 1962, e o profeta tinha nome que haveria de soar a visionário: Marshall McLuhan.

Reiterada de tempos a tempos, reativada como um programa inevitável a partir do momento em que a Internet e os motores de busca passaram a fazer parte do quotidiano, em meados dos anos 90, a profecia não se cumpriu: a "galáxia de Gutenberg" não passou a ser uma coisa do passado, e a espécie do Homo typographicus continuou a crescer e a multiplicar-se, ainda que a sua condição seja agora híbrida, já que passou também a responder - e todos nós sabemos com que solicitude e velocidade - às solicitações da era digital.

Certo é que o caudal dos livros que se folheiam com os dedos, os livros impressos, não parou de aumentar. Robert Darnton (ver bibliografia no final do artigo), um dos mais importantes historiadores do livro e diretor da Biblioteca Universitária de Harvard, fornece os números desta marcha progressiva, num tempo que se esperava ser de abrandamento: em 1998 foram publicados em todo o mundo 700.000 novos títulos, em 2003 foram 859.000 e em 2007 foram 976.000.

Em suma, o mais velho instrumento de leitura - o códex - não apenas não foi expulso (de acordo com a velha teoria de que um novo meio de comunicação nunca exclui completamente o anterior) como manteve a sua posição de domínio absoluto.
A descoberta tecnológica mais importante

Recordemos então, brevemente, uma história de muitos séculos e escassos - mas importantes - acontecimentos. O homem inventou a escrita por volta de 4000 antes da nossa era (um especialista como Jack Goody designou-a como a descoberta tecnológica mais importante da história da Humanidade).

Os hieróglifos egípcios têm apenas menos 800 anos, e a escrita alfabética surgiu por volta do ano 1000. No século II d.C. dá-se um acontecimento importante na história do livro: o códex, isto é, o livro composto por páginas que se viram, substituiu o rolo.

A invenção da tipografia, em 1450, veio, por sua vez, modificar o códex de uma maneira que o tornou naquilo que ainda hoje perdura.

O livro é, assim, uma das mais persistentes e duradouras tecnologias.

As razões da perenidade deste aparelho extraordinário encontram-se nestas características: armazena muita informação em pouco espaço, arruma-se e transporta-se facilmente, tem um formato que o torna bastante manuseável, e a matéria de que é feito - o papel - não encontrou rival na capacidade de preservação (um dos receios mais justificados que os suportes digitais suscitam é o de estarem longe de garantir uma tal longevidade).
A metáfora absoluta

Tão poderoso é o livro que se tornou uma "metáfora absoluta" (um conceito do filósofo alemão Hans Blumenberg) - a metáfora da imagem do mundo.

O "livro do mundo" começou por ser um motivo da especulação místico-filosófico da Idade Média, mas acabou por perder o seu originário carácter teológico e ganhar um sentido profano.

De tal modo que, no Renascimento, o codex vivus da natureza desaloja do lugar central o codex scriptus da Bíblia, dando lugar ao paradigma metaforológico do "livro da natureza".

E esta metáfora do livro do mundo ou da natureza, que marca os alvores da época moderna, enraíza-se nas representações do livro tal como o conhecemos.
Outro tipo de representações

Quando se passa para o livro eletrónico, passamos para outro tipo de representações, já muito distantes das representações mentais e das operações intelectuais ligadas às formas que o livro tem no Ocidente desde há 18 séculos.

E dá-se, ao mesmo tempo, uma revolução da leitura, pois ler num ecrã não é o mesmo que ler num códex. A representação eletrónica dos textos modifica-os totalmente: a materialidade do livro dá lugar à imaterialidade do texto sem lugar próprio; e as relações de contiguidade impostas pela técnica de sucessão das páginas impressas (o que impõe uma leitura linear) opõe-se a uma livre composição fragmentária a que o digital convida.

Como observou Roger Chartier, estas mutações comandam inevitavelmente novas técnicas intelectuais.

Mas a razão pela qual os livros digitais não cumpriram exatamente o percurso triunfal que lhes tinha sido prometido no momento em que entraram em cena não tem a ver com resistências racionalmente elaboradas em função de danos e conveniências previsíveis, mas sim com hábitos, sensações e vícios incrustados no corpo e no cérebro do leitor pela civilização do livro impresso.
Disposição sensorial que o brilho do ecrã não satisfaz

Há uma erótica do livro que Proust imortalizou numa das páginas da "Recherche" (numa célebre descrição em que há uma mão que segura um livro, enquanto a outra acaricia o corpo de Albertine).

Mas há também uma disposição sensorial que o brilho do ecrã não satisfaz: aquela que retira prazer do cheiro e da textura do papel, das formas da encadernação.

De tal modo que um editor francês de livros eletrónicos (CaféScribe) tentou superar esta resistência fornecendo aos seus clientes um autocolante, para eles colocarem no computador, que emite um odor a papel.

Pode-se objetar que estes atavismos são próprios de quem se habituou à leitura nos livros impressos mas não contaminam quem se iniciou e cresceu com os computadores.

Mas, neste caso, há uma última e importante resistência que não foi ainda superada: o ecrã revela-se apto para uma leitura fragmentária e condensada, não para a leitura contínua e linear (os links da Internet levam esta aptidão ao paroxismo).

Causou algum frisson a seguinte afirmação de Bill Gates, o presidente da Microsoft: "A leitura no ecrã é ainda muito inferior à leitura no papel. Mesmo eu, que tenho ecrãs de alta qualidade e me vejo como pioneiro do modo de vida Internet, assim que um texto ultrapassa quatro ou cinco páginas, imprimo-o e gosto de o ter comigo e de o anotar. É uma verdadeira dificuldade para a tecnologia chegar a este grau de comodidade."
O apelo a um tempo próprio

Parece então - e este é um ponto importante - que o modelo de leitura a que o livro desde sempre fez apelo, e que implica, entre outras coisas, um tempo próprio, não é o mesmo modelo de leitura e de operações a que induz a rede e o ecrã.

É por isso que os leitores de ebooks têm evoluído à medida desta determinação paradoxal: os ebooks são tanto mais perfeitos e considerados eficazes quanto mais imitam os livros.

Assombradas por um demónio analógico, estas manifestações supremas do mundo digital aplicam-se a proporcionar ao leitor a sensação de que está perante um novo avatar do livro impresso, que pode folhear as páginas com as pontas dos dedos, escutar o ruído do atrito no papel, sublinhar e escrever nas margens...

Os livros digitais parecem ter como preocupação primeira adaptar-se aos leitores do livro impresso. Percebem-se assim as razões pelas quais se extinguiram as profecias da morte do livro e se multiplicaram as apologias, como aquelas que fazem Umberto Eco e Robert Darnton.

Este último reserva para o livro digital um futuro que passa por jornais e revistas, incluindo revistas científicas e monografias especializadas.

Numa altura em que as editoras universitárias foram obrigadas (mesmo nos Estados Unidos) a reduzir drasticamente o volume de publicações (e Darnton dá-nos um diagnóstico algo sombrio da situação), a edição on-line que pode ser descarregada revela-se o destino mais plausível.
Complementaridade e não exclusão

Mas, mais uma vez, é sobretudo aos mais dedicados leitores do livro impresso que se dirige o livro digital, numa situação de complementaridade e não de exclusão.

Darnton vai mais longe: mostra como as bibliotecas de investigação se tornaram ainda mais necessárias na época do "Google Book Search" e que, sem elas, a digitalização de milhões de livros que a Google já levou a cabo pode redundar no caos bibliográfico em que não é possível aferir a autoridade da cópia digitalizada.

Imaginemos, por exemplo, um livro que foi sendo alterado e acrescentado pelo autor em sucessivas edições.

A Google digitaliza-as todas? Digitaliza só a última, suprimindo as várias etapas que a ela conduzem?

A Google, sublinha Robert Darnton, tem ao seu serviço um exército de informáticos, mas não consta que nas suas fileiras haja um único bibliógrafo ou filólogo.
Campanha contra o projeto da Google

Esta e outras questões que põem em causa a possibilidade de uma biblioteca digitalizada servir para a investigação foi um dos motivos que levou o atual diretor da biblioteca de Harvard a fazer uma campanha no "New York Times" contra o projeto da Google, assinado em 2006 com cinco grandes bibliotecas, para digitalizar os seus livros: as bibliotecas de Nova Iorque, de Harvard, do Michigan, de Stanford e a Bodleian de Oxford.

Como é sabido, esse projeto acabou por encalhar em problemas de direitos de autor que ainda não foram totalmente resolvidos, mas teve um desenvolvimento importante em 2008, quando a Google assinou um acordo com um grupo de autores e de editores, embora deixando que se tornassem evidentes as suas intenções comerciais.

Perigosas - como se começou logo a ver, pelas armadilhas criadas às bibliotecas, na medida em que a Google detém o monopólio e não há qualquer possibilidade de vir a ter concorrência.

Mas regressemos ao ponto de partida. A atitude perante o livro digital já passou por três fases: uma fase inicial de entusiasmo utópico, à qual se seguiu um período de desilusão, superada a seguir por uma tendência para o pragmatismo. No entanto, nunca se quebrou totalmente um certo fascínio pelo livro digital, por mais que a realidade tenda a relativizá-lo.
A mais completa utopia iluminista

A razão reside essencialmente aqui: a hipótese de integrar todos os livros na rede, de ter todo o conhecimento disponível e à mão de poderosos algoritmos criados pelos motores de busca (versão profana da omnisciência divina) corresponde à realização mais completa da utopia iluminista.

Mas, como sabemos desde Adorno e Horkheimer, a dialética do Iluminismo cria também as suas sombras. Nicholas Carr, um estudioso americano das novas tecnologias, publicou em 2008 um artigo na revista "The Atlantic" cujo título mostrava bem como ele tinha feito uma prospeção desse lado mais negro: "Is Google Making us Stupid?".

Numa frase inicial descobrimos logo a tese do autor: "Dantes, eu era um mergulhador num mar de palavras. Agora, deslizo pela superfície como um tipo numa mota de água." Carr, importa acrescentar, não se fica apenas pelo lado sombrio. E as suas teses têm merecido bastantes críticas.

Mas algumas dessas teses encontraram fórmulas convincentes, empiricamente verificáveis por todos nós.

Como aquela, escrita num livro que publicou recentemente, em que volta à sua tese de que a Internet está a mudar o nosso cérebro, destruindo o nosso poder de concentração e incentivando formas de pensamento que enfraquecem o poder de reflexão. Aí, diz ele que o ecrã por onde acedemos à rede é "um eco-sistema de tecnologias de interrupção".

NOTA - Para a elaboração deste artigo, foi usada a seguinte bibliografia: Robert Darnton, "The Case for Books. Past, Present and Future" (2009); Nicholas Carr, "The Shallows. What the Internet Is Doing to Our Brains" (2010); Roger Chartier, "Histoires de la lecture. Un bilan des recherches" (1995); Hans Blumenberg, "Die Lesbarkeit der Welt" (1979; ed. italiana "La leggibilità del mondo").

Texto publicado na revista Atual de 12 de fevereiro de 2011

Fonte: António Guerreiro (www.expresso.pt)

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