segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Natureza de pesquisador

André Frota de Oliveira lê os códices em sua mesa no Arquivo Público.
FOTOS: ALANA ANDRADE



Há mais de 30 anos, um homem assina diariamente a ata de presença da sala de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Ceará, no Centro da cidade. André Frota de Oliveira, 59 anos, é um dos jovens senhores que curiosamente visitam todos os dias os equipamentos de pesquisa de Fortaleza
O prédio é mais uma das construções históricas de Fortaleza ofuscadas pela correria do Centro da cidade. Diante dele, joalherias antigas vendem folheados em ouro.

Mais a frente, estão as lojas dos que têm criatividade para criar peças tão bonitas quanto as das joalherias ou mesmo dos que não possuem dinheiro suficiente para possuir as tais peças delicadas de ouro branco: são as lojas de "bijoux".

Em uma esquina da Senador Alencar reside, pois, reservado e discreto, o Arquivo Público do Estado do Ceará, destinado a guardar documentos públicos e particulares com idades de até 300 anos.

Conservados, tímidos e dotados de um certo mistério tal qual o prédio são alguns dos que, ao longo da história, o frequentaram. Um deles: André Frota de Oliveira, ou como lhe conhecem, professor André. O jovem senhor de 59 anos é um assíduo frequentador do Arquivo Público.

Britanicamente, ele chega ao local às 9h e o deixa às 16h50. Quantas vezes por semana? Todos os dias. O que faz? Pesquisa. Porque? Por que é da sua "natureza", assim fez questão de ressaltar.

Visitantes que pesquisam no acervo, reconhecem sua silhueta alva e esbelta ali no canto da sala. O convívio e a assiduidade concederam-lhe o privilégio de um birô só seu, espaço onde dispõe livros, canetas, anotações em rascunhos amarelados, além de copos dos poucos cafezinhos que sorve ao longo do dia.

Livros publicados por André Frota
Na leitura dos códices, nome dado aos grandes livros antigos e manuscritos, André demonstra habilidade e rapidez impressionantes. Quem repara os escritos lidos por ele pode jurar que não são palavras o que ali se encontra.

Educado, tranquilo e falante, assim é o tal pesquisador que decifra códigos ininteligíveis, mas que, aparentemente não fora, ele mesmo, decifrado. O que pesquisa, onde mora, de que se sustenta, com quem vive? Fomos saber.

Origens

André Frota nasceu em uma família já antiga, descendente de uma prole idem, que deu origem a uma criança ibidem. O pai era muito culto, de modo que o menino André foi criado entre as prateleiras da biblioteca paterna e ao som de música clássica. Segundo ele, sua família sempre possuiu forte tradição cultural, o maior exemplo é o irmão de sua bisavó: o escritor Lívio Barreto, membro da Padaria Espiritual.

Quando jovem, tomou aulas de alemão com o professor Wolfgang Brandenburg, natural de Berlim. Com as lições, tornou-se professor do idioma e tradutor. Seu hábito de pesquisa foi propriamente desenvolvido na década de 70. Nessa época, trabalhava numa companhia de correios e telégrafos. André lembra bem o dia em que chegou ao Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), primeiro acervo que pesquisou.

"Foi no ano de 1974. Se você olhar os livros de presença daquela época, é capaz de minha assinatura ainda estar lá", relembra. Procurava nos documentos vestígios da história do município de Granja, de onde descende sua família.

A pesquisa era ainda desenvolvida apenas nos tempos livres, depois do trabalho. Nesta empreitada, visitou o Instituto do Ceará, a Curia Arquidiocesana, a Biblioteca Pública Menezes Pimentel (sobretudo, o setor de obras raras), mas dedicou-se principalmente ao Arquivo Público.

Pesquisas

Não demorou para que expandisse suas pesquisas para além das fronteiras de Granja. Ao longo dos mais de 30 anos, publicou três trabalhos: "A estrada de ferro de Sobral", "A fortificação holandesa no Camocim" e "Quadros da história de Granja no século XIX". Além desses, a Secretaria de Cultura do Estado publicou ainda uma coleção de três livros, resultado de um longo trabalho de transcrição empreendido pelo pesquisador.

"Os códices estavam em péssimo estado, precisava transcrevê-los para que não se perdessem. Então o secretário da época soube e resolveu publicá-los". A coleção intitulada "A Confederação do Equador" está esgotada e André aproveita a ocasião para um pedido: "A Secretaria precisa publicar uma nova edição porque ela está esgotada e é muito procurada aqui".

Escolhas

Há cerca de 12 anos suas pesquisas se tornaram ininterruptas, resultando nas idas diárias ao Arquivo. O antigo professor de alemão e ex-funcionário da Embratel não se aposentou, tendo simplesmente abandonado suas funções. Tão logo nos disse isso, uma curiosidade sobreveio: se não se aposentou, nem tem emprego, como se sustenta e a sua família?

Aí é que está: André não tem esposa nem filhos. Vive com a mãe e as irmãs. A grande família conservadora acostumou-se a viver unida, de modo que o pesquisador sentiu-se livre o suficiente para dedicar sua vida ao que mais lhe satisfazia. Casou-se com a pesquisa.

O dinheirinho extra que ganha provem da venda de alguns livros, providenciada por um colega dono de um sebo. "Não preciso de muito, não sou uma pessoa que quer muitas coisas. Dediquei minha vida à pesquisa e posso dizer que sou feliz assim. De nada adianta ter muito dinheiro e não fazer o que se gosta", responde com sabedoria.

O autodidata chegou inclusive a cursar duas faculdades, Direito e Filosofia, mas as abandonou. Queria ser livre para pesquisar o que quisesse. Para ele, sua vida de pesquisador não se acomodou ao universo acadêmico e também não teria sido possível se tivesse casado. "Ter esposa e filhos exige dedicação. Penso que não conseguiria fazer as duas coisas", afirma. É feliz, contudo. Algo, no mínimo, admirável em tempos de pessoas tão pouco satisfeitas.

Auxílio

Engana-se, no entanto, quem pensa que o autodidata permanece imerso em suas próprias leituras. Segundo os funcionários do Arquivo, eles mesmos não sabem o que seria dos visitantes não fosse o pesquisador. Dona Lireda Batista, responsável pela sala de pesquisa, sintetiza bem a atuação de André: "É mais fácil um funcionário faltar do que ele. Ave Maria, se não fosse ele aqui pra ajudar esses meninos que, às vezes, vem fazer uma pesquisa. Ele lê esses livros pra eles, quando não entendem as letras antigas. Ele deixa as coisas dele e vai lá ler pros meninos. Eu nunca vi uma pessoa assim", afirma a funcionária, envergonhando André, que escutava no canto da sala.

Assim como auxilia os estudantes, foi também, quando jovem, ajudado. Em meio aos papeis do birô particular, André conserva em um porta retratos o decalque do mestre: Geraldo Nobre, ex-diretor do Arquivo. Geraldo era, tal qual André, um solteirão tímido, reservado e integralmente dedicado à pesquisa.

Foi ele quem o ensinou a manusear os livros, decifrar os manuscritos e compreender o valor da pesquisa. Para André, os pesquisadores de hoje não tem paciência e dedicação suficiente para desenvolver bons estudos. "São poucos os estudantes que vêm aqui. Para fazer pesquisa é preciso muita leitura, isso é um processo demorado, não se faz com uma ou duas visitas", alerta.

Atualmente, André se dedica à tradução de um livro alemão para o português. A obra se chama "Meine Reise in den Brasilianischen Tropen", de autoria da Princesa Therese da Baviera, e relata uma viagem feita por ela aos trópicos em 1889. Tomou conhecimento do livro pelo bibliófilo cearense Jorge Brito, hoje residente em Brasília, e achou que seria importante traduzi-lo.

A princesa, uma naturalista, faz observações acerca da fauna e da flora brasileira, inclusive com termos específicos, que ultimamente perturbam a tradução de André. "Sou um homem das Ciências Humanas, já a autora é naturalista. Então, quando ela fala de um gafanhoto, já fala do nome específico do inseto, quando fala de uma formiga, são milhares de tipos de formiga, o que tem dificultado o meu trabalho", argumenta. Cauteloso, resguarda tais termos técnicos em um maço de folhas unidas com um clipe. Por certo, há de caçar a tradução de cada uma delas.

Faltando dez minutos para as cinco da tarde, o senhor de cabelos brancos encerra mais um expediente. Deixa o prédio e segue a pé para casa, localizada a pouco mais de três quilômetros dali. Não tem medo do caminho. Gosta das longas caminhadas, da música clássica, do silêncio tímido, da liberdade de viver ao seu método e, principalmente, da pesquisa. São, de certo modo, sua religião, sua natureza. Leia mais na página 4

Fique por dentro
Solar dos Fernandes

A construção que abriga o Arquivo Público do Estado do Ceará é um legado da família Fernandes Vieira. O prédio foi construído em 1880 e destinado ao Arquivo em 1916. O acervo do equipamento é composto de correspondências, processos, relatórios, certidões, inventários e mapas, provenientes dos Três Poderes e também de particulares, desde o século XVII

MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER

Fonte: Diário do Nordeste 

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